Enxerguemos ou não, existem relações sobremaneira significativas orbitando e unindo as palavras Fábrica e Cárcere, projetadas e moldadas, cada qual, a partir da influência sistêmica visceral de um conjunto de racionalidades, operacionalidades, discursos e mecânicas de funcionamento (nunca é demais frisar).
Essa interação transcenderia o já chocante espectro da aparência, da mera visualização da configuração arquitetônica mimeticamente (re)produzida nas formas de ser, ao colossal ponto de (de)formar nosso imaginário – e consequentemente nosso mundo – com regras e pressupostos implícitos pensados a partir da autopreservação sistêmica de certas categorias centrais e estruturas de pensamento, instituindo um determinado campo comunicativo (in)visível de significações.
Apontando o óbvio: existe uma associação no sentido de que o encarcerado, o ser humano depositado no cárcere, necessita sofrer; um sofrimento maior do que o sofrimento dos trabalhadores mais explorados; é dizer: condições abaixo e mais repugnantes adotando o referencial das circunstâncias já mais baixas e precárias entre os trabalhadores.
O Cárcere tem uma mensagem: é melhor você ralar muito, recebendo pouco, se alimentando, dormindo e vivendo mal, do que ser desovado num espaço confinado, com regras de sobrevivência próprias, em que seu tempo e vida são sugados.
O tempo, aliás, nos remete a outro elemento central: para além do sequestro do conflito, sequestro do tempo e sequestro do ser se confundem. Em alguma medida, ser é tempo, e tempo é ser.
Igualmente, Cárcere e Fábrica historicamente nutrem uma promíscua relação no mundo capitalista, interligadas grosso modo desde o nascedouro das estruturas de pensamento que viriam a energizá-las, assim moldando uma realidade física.
Esses mundos conectados – Fábrica e Cárcere – cujo reflexo de um se percebe no outro e vice-versa, curiosamente produziam discursos no sentido desta regra implícita: quem está no cárcere não é trabalhador, quem trabalhar não cairá aqui.
Não por acaso, as pessoas ainda gritam quando são abordadas pela polícia: “senhor, senhor, sou trabalhador, sou trabalhador!!” Por que gritam isso? E daí que é trabalhador? Ora, então trabalhador não realiza comportamentos criminalizados? Não comete “crimes”?
Não nas regras implícitas (im)postas interiorizadas e incorporadas que nos regem. Não no nosso imaginário formatado. Resquícios dessa contaminação discursiva, baseada em critérios ocultos mais poderosos do que lógicos.
Ignoramos a espinha dorsal do Cárcere. Nem sequer percebemos as fraturas biopolíticas na estrutura das ossadas que erigimos e organizamos sob essa alcunha de Cárcere, que possui data e história, esquecem muitos.
Repetimos coisas que deveriam ser ilógicas, mas, tristemente, fazem sentido para as pessoas. É dizer, o Cárcere ainda faz sentido para as pessoas. As condições que perfazem e preenchem o conteúdo contextual, o caldo, o imaginário punitivo, ainda se fazem presentes nas estruturas de pensamento das pessoas.
Toda sorte de danos, dores e sofrimentos ainda são racionalizados com respostas que não respondem, soluções que não solucionam, e, acima de tudo, com dores que doem.
Isso dito, é de clareza solar que a técnica contemporânea do Estado de Direito jamais aboliu ou suprimiu a barbárie, apenas a sofisticou.
Dizem ou sugerem – as ideologias-re – que o condenado poderá refletir durante o tempo confinado em sua caixa, gradativamente se tornando um ser diferente.
De fato, um ser diferente, agora com a eterna cicatriz do Cárcere, que quase seguramente lhe renderá um tratamento diferente para sempre: uma marca, um estigma permanente, que a todo momento pode ser invocada de modo a promover sua desqualificação, podridão e degeneração
Múltiplos discursos buscam (re)construir uma atribuição de sentido à pena de prisão; eis o perfil dos discursos legitimantes do poder punitivo situados juridicamente enquanto oficiais: forjar sentidos, (re)produzir saberes justificadores de poderes que já se exerciam, mas que precisam de motivos válidos para impor-se.
Guilherme Moreira Pires é advogado, doutorando em Direito Penal. Abolicionista e anarquista. Autor dos livros: “Desconstrutivismo Penal: uma análise crítica da expansão punitiva e dos mutantes rumos do direito penal” (2013); “O Estado e seus inimigos: Multiplicidade e alteridade em chamas” (2014) e “Os amigos do Poder: ensaios sobre o Estado e o Delito a partir da Filosofia da Linguagem”(2014). Participou do livro “Brasil em Crise” (2015). Grupo Abolicionismo Penal – América Latina -https://www.facebook.com/groups/673508846078451/?fref=ts
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